Os homens que se entregam à sabedoria são de longe os mais infelizes. Duplamente loucos, esquecem que nasceram homens e querem imitar os deuses poderosos, e a exemplo dos Titãs, armados com as ciências e as artes, declaram guerra à Natureza. Ora, os menos infelizes são aqueles que mais se aproximam da animalidade e da estupidez.
Tentarei fazer-vos entender isto, usando, em vez dos argumentos dos estóicos, um exemplo crasso. Haverá, pelos deuses imortais, espécie mais feliz que os homens a quem o vulgo chama loucos, parvos, imbecis, cognomes belíssimos, na minha opinião? Esta afirmação poderá a princípio parecer insensata e absurda e, no entanto, nada há de mais verdadeiro. Tais homens não receiam a morte, e, por Júpiter! isso já não representa pequena vantagem! A sua consciência não os incomoda. As histórias de fantasmas não os aterrorizam, nem os afecta o medo das aparições e espectros, nem os males que os ameaçam ou a esperança dos bens que poderão vir a receber. Nada, em resumo, os atormenta, isentos dos mil cuidadeos de que a vida é feita. Ignoram a vergonha, o medo, a ambição, a inveja e chegam mesmo, se são suficientemente estúpidos, a gozar o privilégio, segundo os teólogos, de não cometerem pecados.
Passai agora em revista, ó louco sábio, todas as noites e infinitos dias em que a inquietação crucifica a tua alma. Olha bem para todos os aborrecimentos da tua vida e tenta compreender, enfim, de quantos males eu liberto os meus loucos. Acresce ainda que não só passam o tempo em divertimentos, risos e canções, como levam a todos os que os rodeiam o prazer, os seus jogos, o divertimento e a alegria, como se a indulgência divina os tivesse destinado a afastar a tristeza da vida humana. Além disso, quaisquer que sejam as disposições de uns para os outros, todos os reconhecem como amigos; procuram-nos, adoram-nos, acarinham-nos, gostam de conversar com eles, permitem-lhes que tudo digam e tudo façam. Ninguém os tenta prejudicar e os próprios animais ferozes evitam fazer-lhes mal como se instintivamente os soubessem inofensivos. Estão, com efeito, sob a protecção dos deuses e sobretudo sob a minha égide, rodeados pelo respeito universal. Erasmo de Roterdão, em "Elogio da Loucura" (fala a Loucura)
O Elogio da Loucura, é um ensaio escrito em 1509 por Erasmo de Roterdão e publicado em 1511. O Elogio da Loucura é considerado um dos mais influentes livros da civilização ocidental e um dos catalisadores da Reforma Protestante.
O livro começa com um aspecto satírico para depois tomar um aspecto mais sombrio, em uma série de orações, já que a loucura aprecia a auto-depreciação, e passa então a uma apreciação satírica dos abusos supersticiosos da doutrina católica e das supostas práticas corruptas da Igreja Católica Romana. O ensaio termina com um testamento claro e por vezes emocionante dos ideais cristãos.